Não é novidade que o bom exemplo inspira e contribui para o crescimento da sociedade. E o Direito, enquanto ferramenta para estabilizar os desafios sociais decorrentes dessa expansão, importa relevante papel na dinâmica.
(Artigo do sócio fundador Eduardo Muniz Cavalcanti, coautoria da advogada Tereza Amorim, para o Conjur)
Os métodos adequados de resoluções de conflito tiveram o seu início protagonizado por pessoas sujeitas às regras do Direito Privado, pois essas dispõem, regra geral, de seus direitos sem maiores formalidades. Com a sedimentação do tema no ordenamento jurídico [1], mediante balizas e regras mais claras e oriundas da prática, o assunto se estendeu à administração pública. A indisponibilidade do interesse público, antes uma barreira para autorizar, por exemplo, a autocomposição, teve seus contornos remodelados diante dos avanços vistos em outras áreas jurídicas.
A transação tributária na esfera federal é um caso de sucesso [2]. Diante do bom exemplo, o estado de São Paulo editou a Lei nº 17.843/2023, regulamentada especialmente pela Resolução PGE nº 6/2024. Há outras normas que tratam de regras mais específicas, como o uso de crédito acumulado de ICMS para amortização da dívida, mas que, diante dessa especificidade, não são analisadas neste artigo, cujo objetivo é ressaltar as principais vantagens e eventuais pontos de melhoria do contexto normativo.
São Paulo é o maior estado do país em termos socioeconômicos, portanto não é de causar estranheza que, hoje, a dívida ativa paulista gire em torno dos R$ 420 bilhões [3], com incremento anual médio [4] de cerca de R$ 20 bilhões nos últimos cinco anos. Pela expressividade dos valores, estratégias para efetivar a receita pública são medidas que se impõem, principalmente por meio da consensualidade. Ganha-se celeridade, logo, eficiência.
Pelo incremento anual desses números, é fato que alternativas à regularização desses débitos devem ser pensadas, contexto em que a transação tributária floresce. Há vantagens para ambos os lados: enquanto o Estado aufere a receita, os contribuintes que tiveram dificuldades em arcar tempestivamente com as obrigações podem, potencialmente, alcançar descontos para a equalização do passivo e, então, para a continuidade da operação empresarial.
Situação dos optantes do Simples Nacional e modalidades da transação
São Paulo inaugurou a sua transação tributária, como regra, para os créditos inscritos em dívida ativa [5], sejam eles tributários ou não, ainda que de titularidade de pessoa jurídica da administração indireta, mas cuja gestão compita à PGE. Há, entretanto, vedação expressa para negociar débitos de ICMS de optante pelo Simples Nacional, exceto quando autorizado pelo Comitê
Gestor, e do adicional ao Fundo Estadual de Combate e Erradicação à Pobreza (Fecoep), além de outras hipóteses [6].
Aqui, parece-nos que os contribuintes optantes do Simples Nacional, que deveriam ser tratados diferenciada – e favoravelmente – por expresso comando constitucional [7] saem em desvantagem. E isso é um pouco contraditório, já que o tratamento diferenciado – e favorecido – é uma prioridade absoluta na busca pelo desenvolvimento nacional por constar também na recente EC nº 132/2023 em idênticos termos.
Quanto às modalidades, são as mesmas da transação federal, quais sejam: por (1) adesão, que seguem regras estipuladas por edital e oferece maior simplicidade e celeridade e (2) individual, disponível para situações especiais que exigem análise mais aprofundada, como para dívidas acima de R$ 10 milhões ou, ainda, não enquadradas em editais vigentes. Além disso, para dívidas entre R$ 1 e 10 milhões, o contribuinte pode optar pela transação individual simplificada, que mantém parte das flexibilidades sem as complexidades da individual.
Porque o instituto da transação pressupõe concessões mútuas, a legislação paulista oferece um conjunto de condições diferenciadas, adaptadas ao perfil financeiro dos contribuintes, principalmente nos casos de transação individual.
Devedores em recuperação, descontos e garantias
Na classificação da recuperabilidade da dívida, são presumidamente irrecuperáveis [8] os créditos de devedores em recuperação judicial, falência ou liquidação – judicial ou extra. Os devedores em recuperação extrajudicial foram deixados de fora do Acordo Paulista (nome dado ao programa), o que pode deixar de fora os contribuintes que legitimamente utilizam do meio recuperacional para se soerguer. Não parece um acerto, principalmente porque tal procedimento não foge do amparo jurisdicional, já que pode não haver homologação caso se fira a ordem pública. Ou seja, eventual dolo, fraude e simulação não seriam abarcados.
Os descontos são restritos aos créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação, podendo chegar a 75% dos acréscimos para pagamentos em parcela única daqueles primeiros citados, nos termos da Resolução PGE nº 6/2024. Uma diferença importante sobre o desconto é que, no âmbito do edital vigente destinado aos devedores em situações de crise (nº 3/2024), os descontos chegam a 100% dos acréscimos.
Não vemos com bons olhos a diferença de 25% nos descontos da transação individual e da por adesão para esses devedores, considerando as dificuldades operacionais e financeiras que enfrentam.
Além disso, entendemos contraditória, pois a transação individual tende a propiciar à PGE mais meios e dados para analisar o contexto do contribuinte, de modo que poderiam alcançar os descontos máximos permitidos pela Lei nº 17.843/2021, de forma mais segura pela análise documental aprofundada. Em contrapartida, os honorários devidos pelos devedores em crise são expurgados para a consolidação do saldo negociado, em ambas as modalidades.
Continuemos com as classificações. Para os créditos dificilmente recuperáveis, os descontos são menores, podendo alcançar apenas 50% em pagamentos parcelados. Será um desafio, sob as atuais regras, alcançar classificação que efetivamente reflita as dificuldades do contribuinte, pois os parâmetros são superficiais e tendem a deixar o contribuinte melhor do que muitas vezes é.
A fórmula leva em consideração (1) a existência de garantias, suspensões e parcelamentos da dívida, (2) o histórico de pagamento do contribuinte e (3) a idade da dívida. A nota final é o resultado da soma dessas variáveis, conforme os seguintes parâmetros: (a) créditos recuperáveis: devedores com nota final 1 (um) ou superior e (b) créditos de difícil recuperação, as pertencentes a devedores com nota final 0 (zero).
São presumidamente recuperáveis os créditos de empresas pertencentes a grupo de fato reconhecido em decisão favorável ao Estado, ainda que não transitada em julgado. É espécie de punição que, embora plausível para os casos de má-fé pura, na prática deve ser mitigada. Pensemos, por exemplo, na recuperação de uma empresa após a instituição de programa de compliance? A transação cairia muito bem nesse caso, além do que a autoridade pública teria provas para analisar a evolução e a higidez.
Também exigirá atenção e ponderação do aplicador do Direito a classificação de “inadimplentes sistemáticos” do ICMS, para os quais se vedam descontos. E a suspensão da exigibilidade do crédito tributário não terá relevância para essa vedação.
De acordo com a norma, são inadimplentes sistemáticos os contribuintes que não tenham pago, nos últimos 5 anos, a partir de 50% de obrigações vencidas. Presumidamente, o enquadramento ficará caracterizado quando existentes 30 ou mais inscrições de ICMS declarado referentes a um mesmo regime de apuração. Para isso, serão considerados separadamente cada um dos estabelecimentos e o enquadramento de um estabelecimento será estendido aos demais;
As presunções deveriam ser exceção ao Direito, já que, por natureza, tratamos com uma ciência social aplicada, um fenômeno dinâmico. Presunções não são o caminho e tendem a ser injustas, apesar de cabíveis quando confrontadas com situações massificadas, que possuem alguma regra, algum padrão. Jamais em sede de transação tributária, tampouco na modalidade individual.
Pensemos em uma empresa com mais de 40 estabelecimentos, facilmente se atingem 100 inscrições em um curto período de crise. Mesmo que inadimplente em 35 delas – menos do que 50% – será enquadrado como sistemático pela regra presuntiva das 30 inscrições, antes mencionada.
Torçamos, para eventual caso extraordinário, pela aplicação razoável da norma, em prol da própria consensualidade e amparadas pelas diretrizes fixadas na recente reforma da Lindb.
Quanto à exigência de garantia, dispensa-se para os créditos irrecuperáveis e de difícil recuperação, exceto quanto garantidos em autos processuais. Para os recuperáveis, se o plano de pagamento for de até 60 parcelas, a garantia pode ser dispensada, exceto quando já constituída nos autos judiciais. Para pagamentos em até 84 parcelas, aceitam-se todas as modalidades de garantia, com atenção ao rol de preferência da LEF. A partir de 85 meses, aceitam-se apenas depósito judicial, fiança bancária e seguro garantia.
Apesar de implícito, a Resolução PGE/SP nº 6/2024 fixa expressamente que a aceitação de garantias observará o patrimônio e o faturamento da empresa.
Se valores tiverem sido depositados em juízo ou penhorados, a Lei nº 17.843/2023 determina que eles sejam ofertados no âmbito do acordo para que sejam abatidos do valor líquido negociado (após a incidência dos descontos). Tais valores serão liberados apenas se não existirem outros créditos para/com o Estado.
Exceção importante reside na demonstração, pelo contribuinte, de que não levantar tais valores inviabiliza a atividade empresarial, como por exemplo em caso de pagamento de salários ou investimento operacional que tenda a melhorar o desempenho da empresa. Isso tende a ser objeto de liberação também em processo judicial, de sorte que insistências inócuas seriam contrárias à consensualidade proposta.
Créditos e precatórios para amortização do passivo
Quanto à exigência de entrada mínima, as normas a dispensam quando: (1) a totalidade dos débitos estiver garantida, (2) a transação envolver créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação e (3) quando o parcelamento for em até 24 meses. Para pagamentos de créditos recuperáveis em mais de 25 parcelas, a entrada mínima observará os seguintes percentuais do valor líquido da dívida: (1) 4%, entre 25 e 48 parcelas e (2) 5% a partir de 49 meses.
Um ponto positivo é a possibilidade de amortizar o passivo – após a incidência dos descontos legais – de créditos acumulados de ICMS e de precatórios para amortizar o passivo tributário, com limite de compensação de até 75% sobre o valor líquido da dívida. Esses créditos, uma vez habilitados, permitem uma solução mais viável para devedores que possuem ativos intangíveis, mas enfrentam dificuldades de fluxo de caixa. Esse ponto é relevante para grandes contribuintes e setores específicos, que frequentemente acumulam créditos fiscais e, com a regra, podem destinar tais ativos à quitação de parte expressiva de seus débitos.
Pelos aspectos gerais aqui ressaltados, a transação tributária em São Paulo é mais um importante passo no avanço da consensualidade entre Fisco e contribuintes e tende a ser tão frutífera quanto a federal, mas, para isso, alguns ajustes devem ser feitos para tornar as regras mais coerentes. É o caso, por exemplo, do limite de desconto de até 75% dos acréscimos para transações individuais, mas de até 100% para transações em edital, como no caso dos devedores em recuperação judicial.
Um ponto de atenção é o uso de presunções absolutas para enquadrar ou desenquadrar contribuintes das hipóteses de transação, principalmente da individual, onde deveria haver espaço para efetivos diálogo e esclarecimentos. Embora regras presuntivas possam dar eficiência, devem admitir prova em contrário para não sacramentarem injustiças e, então, fechar as portas para o horizonte de recuperação almejado.
[1] Arts. 3º, § 3º, e 190 do CPC/2015, por exemplo.
[2] Sem que isso a isente, claro, de críticas para o seu aperfeiçoamento diante de situações novas colocadas à apreciação da PGFN, com a peculiaridade operacional de cada contribuinte.
[3] Acesso à planilha disponibilizada pela PGE/SP no seguinte endereço: https://portal.fazenda.sp.gov.br/acessoinformacao/Paginas/D%C3%ADvida-Ativa.aspx.
[4] Cálculo baseado na planilha indicada no item anterior.
[5] Há exceção para os devedores em recuperação judicial, que podem migrar saldos de parcelamentos anteriormente firmados com a SEFAZ, assim como solicitar o imediato encaminhamento à inscrição de débitos já vencidos.
[6] Também é vedado transacionar nos seguintes casos: (i) débitos relativos a multa de natureza penal, exceto quando não houver trânsito em julgado (a ressalva é posta pela Lei nº 17.843/2023 e não foi transposta para a Resolução PGE nº 6/2024, o que pode ser um óbice para os casos, mesmo sem trânsito em julgado); (ii) débito garantido por depósito, fiança ou seguro, quando a ação antiexacional tiver transitado em julgado em favor do Estado quanto ao mérito; e (iii) contribuintes com transação rescindida há menos de dois anos, contados da data da rescisão.
[7] Art. 146. Cabe à lei complementar: (…) III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
[8] Igualmente, as dívidas de pessoas físicas falecidas e empresas com CNPJ baixado, inapto, entre outras situações.
Fonte: Consultor Jurídico