Programa está alinhado com tendência internacional de maior cooperação entre administrações tributárias e contribuintes, mas enfrenta desafios.
Artigo do sócio fundador Eduardo Muniz Cavalcanti para o portal Folha de São Paulo.
Na obra clássica: “A Democracia na América”, Alexis de Tocqueville apregoava que as instituições e as leis são reflexos da cultura e dos costumes de um povo e não o contrário, ou seja, as legislações, por si, não transformam práticas enraizadas sem que haja alteração nos comportamentos subjacentes. A Receita Federal do Brasil lançou recentemente o programa Receita de Consenso, com a promessa de inovar a forma de resolução de litígios tributários.
Instituído pela Portaria RFB nº 467/2024 e lançado oficialmente no dia 1º de outubro de 2024, o programa pretende evitar que divergências sobre a qualificação de fatos tributários evoluam para disputas judiciais ou administrativas prolongadas, especialmente visando à promoção de um ambiente de diálogo e cooperação entre o Fisco e os contribuintes.
O objetivo principal é impedir que conflitos em torno da qualificação de fatos tributários e aduaneiros cheguem ao Judiciário, utilizando, para tanto, de técnicas de consensualidade e mediação. O instituto da Consulta poderia, se devidamente aproveitado, e melhor utilizado, fazer às vezes, porém, esse novo ambiente, estrutura-se como canal de discussão com a Receita de maneira aberta, sem o risco de autuações imediatas, desde que preencham certos critérios, como possuir alta classificação em programas de conformidade tributária, como o Confia, o OEA ou o Sintonia A+. Pelo que se percebe a Receita Federal procura não apenas resolver os conflitos de maneira mais rápida, mas promover uma relação mais colaborativa com as empresas, incentivando a conformidade voluntária e a cooperação.
Talvez um dos diferenciais do Receita de Consenso seja a criação de uma equipe autônoma e independente da fiscalização comum da Receita Federal, cuja função é a análise dos casos submetidos ao programa, garantindo que o processo seja imparcial e direcionado para a solução do problema, e não a imposição de penalidades. A execução do programa se dará por meio do Centro de Prevenção e Solução de Conflitos Tributários e Aduaneiros (Cecat), que foi criado para recepcionar, analisar e deliberar sobre as demandas apresentadas pelos contribuintes.
Duas são as situações principais que permitem a adesão ao programa. A primeira quando há um procedimento fiscal em andamento e surge uma divergência sobre a qualificação de um fato tributário e, nessa hipótese, a empresa pode propor a discussão do caso no âmbito do Cecat, antes que a Receita promova a autuação. A segunda se dá quando a empresa, ainda sem estar sob fiscalização, deseja definir previamente as consequências tributárias de um determinado negócio jurídico. Em ambos os casos, o Cecat deverá promover audiências para discutir os fatos e as operações com a empresa e os representantes da Receita, buscando uma solução consensual.
O programa é direcionado, exclusivamente, para empresas com alta classificação em programas de conformidade, como o Confia, o OEA e o Sintonia A+, de modo a fomentar a conformidade voluntária com a Receita Federal. A adesão ao programa depende de um exame de admissibilidade, sendo vedada a participação em casos que envolvam indícios de fraude, sonegação ou crimes contra a ordem tributária.
Apesar da inovação, a portaria não prevê de forma clara o que acontece quando não se atinge o consenso, o que gera preocupações quanto à exposição das empresas a autuações caso o acordo falhe. Porém, se o acordo for alcançado, a Receita Federal e a empresa firmam um termo de consensualidade, no qual a Receita se compromete a não autuar a companhia em relação àquele fato específico, e a empresa, por sua vez, deve desistir de qualquer contencioso administrativo ou judicial sobre o tema. Esse compromisso assegura a conclusão mais rápida e menos custosa para as partes, além de proporcionar maior segurança jurídica aos contribuintes, que não precisam temer uma autuação futura sobre a matéria acordada.
O Receita de Consenso está alinhado com uma tendência internacional de maior cooperação entre as administrações tributárias e os contribuintes, prática já adotada em diversos países como parte de esforços para tornar os sistemas tributários mais eficientes, transparentes e previsíveis. Entretanto, o Receita de Consenso enfrenta desafios.
E se não for alcançado um acordo, na sequência o contribuinte será autuado? Ao ingressar no programa, a empresa precisa detalhar suas operações e a qualificação dos fatos tributários para a Receita, o que pode acabar expondo-a a uma fiscalização mais rigorosa, caso o acordo não seja alcançado. Por isso, sugestivo recomendar não somente uma trégua enquanto estiver em curso a pretensão de consenso, mas que não haja imposição de penalidades decorrentes de dúvidas devidamente fundadas do contribuinte.
Direitos e mudanças institucionais não são proclamados por normas, mas pela real transformação na observância das leis, segundo Norberto Bobbio em “A Era dos Direitos” e, por isso, na expectativa de que o programa traga efetivamente benefícios, dependente, sobretudo, de uma mudança cultural significativa no ambiente Fiscal brasileiro. É preciso distanciar-se de práticas tradicionais e abraçar um modelo baseado em diálogo e cooperação, de modo a conferir e promover maior segurança jurídica e previsibilidade nas relações tributárias no país.
Fonte: Folha de São Paulo