Governo regulamenta margem de preferência para produtos e serviços nacionais.
No último dia 23 de janeiro, foi publicado o Decreto 11.890, que compõe o conjunto de normas regulamentares da nova Lei de Licitações e pretende detalhar a aplicação da margem de preferência nas contratações públicas nacionais.
Artigo do sócio Wesley Bento para o portal Jota
A possibilidade de se estabelecer margens de preferência para produtos e serviços nacionais, em detrimento dos estrangeiros, foi acolhida pela Lei 14.133/2021 (art. 26), seguindo tradição normativa da Lei 8.666/93, que possuía semelhante disposição desde 2010 e exprime opção do Estado em utilizar as contratações públicas para atingimento de objetivos não concentrados exclusivamente no interesse público secundário de obter o melhor produto ou serviço pelo menor preço.
Não à toa que a mesma Medida Provisória que instituiu a margem de preferência na Lei 8.666/93 alinhou o desenvolvimento nacional com a isonomia e com a proposta mais vantajosa como sendo os objetivos da licitação, agora sintetizados na Lei 14.133/2021, como sendo assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto; assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição; evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos; e incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.
De acordo com o Decreto, os produtos manufaturados nacionais e os serviços nacionais que atendam aos regulamentos técnicos pertinentes e às normas técnicas brasileiras poderão ser objeto de margem de preferência de até dez por cento sobre o preço dos produtos manufaturados estrangeiros ou dos serviços estrangeiros. Essa margem poderá ser ampliada em mais dez por cento, chegando a 20%, se os produtos ou serviços resultarem de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no Brasil.
Por se tratar de margem de preferência e não de direito de preferência, o licitante brasileiro não tem apenas a faculdade de cobrir a oferta estrangeira, mas sim a vantagem de vender seu produto ou serviço por preço superior ao que a Administração pagaria ao licitante de outro país, desde que dentro das margens previamente estabelecidas.
Há custos para a implementação dessa política: um de natureza mais imediata e direta, que é o valor gasto a maior pela Administração, com sacrifício de outras necessidades públicas; e outro mais discreto, mas igualmente relevante, que é a perda de competitividade no certame com a menor atratividade da disputa para players internacionais.
Exatamente por isso, embora discricionária, a decisão que resolve conferir margens de preferência está sujeita a ônus de motivação que evidencie uma adequada ponderação do custo-benefício, além de justificar a flexibilização dos compromissos estatais assumidos na Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), como o de conferir tratamento isonômico entre os agentes econômicos, o de evitar reserva de mercado e de não impedir a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado.
O novo Decreto sinalizou que a definição das margens deve observar as diretrizes gerais das políticas industrial, tecnológica, ambiental e de comércio exterior (art. 8º, § 1º do Decreto 11.890/24), flexibilizando as diretrizes mais concretas oferecidas pelo Decreto 7.546/2011, que exigiam a decisão se basear em estudos, revistos periodicamente, em prazo não superior a cinco anos e que deveriam identificar o efeito multiplicador sobre a arrecadação de tributos, o potencial de desenvolvimento e inovação tecnológica, o custo adicional dos produtos e serviços e, nas revisões, a análise retrospectiva dos resultados (art. 8º, § 1º).
Para ampliar minimamente a legitimidade da decisão, o estabelecimento dessas margens de preferência deve ser precedido de consulta pública e/ou audiência pública, como é estimulado pela nova lei de licitações (art. 21) e mesmo pela lei do processo administrativo federal (art. 32 da Lei 9.784/99), e pode trazer a debate elementos não considerados inicialmente pelo formulador da política. Também deve contar com prévia manifestação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, considerando que essas unidades serão impactadas por esses parâmetros nas licitações que conduzirem, mas a Lei concentrou a decisão nas mãos do Poder Executivo Federal, sem estabelecer um mecanismo de resguardo da dignidade federativa.
As novidades em relação à regulamentação anterior abrangem, ainda, a inclusão de bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis como candidatos a essa sistemática e a limitação da margem total a 20%, inferior aos 25% admitidos anteriormente. O regulamento não estende mais a possibilidade de instituição de margens nas contratações feitas por empresas estatais, que passaram a ser regidas pela Lei 13.303/2016.
Também fortaleceu a Comissão Interministerial de Contratações Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (CICS), que substitui a Comissão Interministerial de Compras Públicas (CICP), extinta em 2020 pelo Decreto 10.473/2020. Com o novo desenho normativo, a Comissão assume poderes para definir sozinha as margens de preferência normais (até 10%), que antes só podiam ser outorgadas por Decreto do Presidente da República, exigível agora apenas para a margem de preferência adicional (mais 10%). Também lhe coube, sem necessidade de Decreto, estipular eventuais medidas de compensação comercial, industrial ou tecnológica em contrapartida do contratado beneficiado pela margem de preferência.
Como o governo federal tem dado sinais concretos de que entende o Estado como principal indutor do desenvolvimento da indústria nacional – e o recente anúncio do Nova Indústria Brasil confirma isso –, o estabelecimento de margens de preferência pode ser uma ferramenta importante para essa finalidade, com estímulo a determinados setores e produtos no mercado, valendo a pena acompanhar como a CICS empoderada fará uso dessas suas atribuições.
Fonte: JOTA